quinta-feira, 27 de março de 2014

SOBRE O GOLPE MILITAR DE 1964



SOBRE O GOLPE MILITAR DE 1964

Em 31 de março próximo o golpe militar de 1964 completará trinta anos, pensei sobre o que escrever a respeito desse período tão trágico da nossa história. Desisti de escrever um texto sobre o período e suas atrocidades, prefiro usar uma experiência  vivenciada por Vinícius de Moraes e representada também em sua obra.    
Em 13 de Dezembro de 1968, dia em que a ditadura brasileira instituiu o Ato Institucional número 5, o ponto máximo da escala totalitária dos militares, o Poeta estava em Lisboa.
Fazia um show acompanhado pela cantora Márcia e pelo violonista Baden Powell por lá, quando recebe a notícia. Do palco, comunica ao público sua tristeza com a situação do Brasil e lê seu poema “Minha Pátria”.
Quando sai do hotel, o Poeta se vê cercado por salazaristas revoltados com seu discurso contra a ditadura. É aconselhado a usar uma porta alternativa. Recusa-se. Sai e olha os manifestantes raivosos.
Ouve as vaias e as palavras de ordem que contagiam os idiotas de qualquer orientação política nestes momentos.
Então, ergue a voz e recita:
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.
Trata-se da Poética, que ele escreveu em 1950, quando estava em Nova York. Na metade do poema, uma voz com sotaque brasileiro repete o poema com ele. É um estudante que está junto com os salazaristas. Os revoltosos se calam aos poucos. Um ou outro tenta gritar, mas a força dos versos de Vinicius os cala e, ao final, só se ouve o Poeta.
Um primeiro rapaz tira o casaco e o coloca no chão, para servir de tapete para Vinicius. Outros o imitam em seguida.
Vinicius, que estava ameaçado por um grupo furioso, agora sai de cabeça erguida pisando em um mosaico de paletós e sobretudos.

A história está na biografia de Vinicius, “O Poeta da Paixão”, escrita por José Castello.
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MINHA PÁTRIA
Vinicius de Moraes
"A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.
Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!
Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!
Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.
Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...
Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!
Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.
Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!
Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.
Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.
Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
'Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes.”